sexta-feira, 27 de julho de 2012

A VIAGEM

            Foi pura adrenalina como se diz hoje, viajar de trem pela primeira vez!
Pra mim, trem era uma coisa qualquer que se perdia pela casa, ou na qual se esbarrava por não ter sido devidamente guardada. Os “trem” de cama que precisavam ser trocados, os “trem” que ficaram esquecidos no quintal. Lembro ainda da mãe perguntando à Lalinha: - onde você colocou os “trem” do tio Zé, criatura?”.
Foi, portanto, com o maior espanto que recebi a notícia de que iriamos viajar numa daquelas coisas que se chamava, em casa, de trem.
Pra mim, trem era tudo aquilo cujo nome fugia da memória da gente.
 Eu já vira uma figura de trem, mas os “trem” lá de casa eram mais concretos. Tudo era “trem”. Trem pra lá, trem pra cá. E geralmente, aqueles ”trens” viviam perdidos como que se escondendo das faxinas da Lalinha que se encarregava de ajudar a mãe.
Mas, não me importava em que trem sairia montada pra viajar pelo mundo afora. O importante é que ia viajar- palavra mágica esta – viajar, viagem!
Chegado o dia marcado para a aventura a ansiedade não me deixou dormir. Afinal estava avisada de que sairíamos ainda com a lua no céu gelado da serra pra pegar o trem lá pras bandas de serra abaixo. Até lá, eu caraminholava, com certeza iríamos montados num “trem” qualquer.
Visualizava-me, bem como ao pai e à mãe, voando naquela mala velha lá do sótão que estava sempre sendo chutada por alguém que prometia dar fim àquele “trem”. Será?
Ou quem sabe, empoleirados em cima de um tapete igual aquele tapete mágico do Alladin?
 Enfim, é chegada a hora de partir. A madrugada tornava tudo ainda mais misterioso. A cidade deserta. Na rua, nem cachorro aparecia pra enfrentar a geada caindo. Como me diziam, caindo lá de cima do pólo norte, onde morava o Papai –Noel.
 Metidos em mil agasalhos enfrentamos a geada que se condensava no para-brisa do carro de aluguel que o pai contratara para levar-nos serra abaixo.
Serra abaixo! Então iríamos rolando, rolando até cair dentro de outro “trem”.?
O carro velho do seu Mário não parecia nada com o que minhas fantasias criaram. Era apenas um carro. E uma vez dentro dele, sem maiores novidades, dormi o sono dos anjos travessos, no regaço da minha mãe. O que não me impediu de sonhar que era uma linda bola colorida rolando serra abaixo até entrar numa coisa que nem em sonhos eu saberia definir.
Havíamos chegado á cidade onde a gente ia ficar hospedado num hotel.
Puxa, que viagem!
Eu nunca havia estado num hotel. Quando as aulas retornassem iria ter o que contar...
Instalados afinal, descemos para o jantar. Tudo muito legal. Algumas pessoas desconhecidas. Nenhuma criança. Que pena! Teria que fazer minhas explorações sozinha.
Na sala de estar havia uma cadeira de balanço e foi nela que encontrei uma forma de brincar. Percebi que a cadeira se movia pela sala se a balançasse com força. Que brincadeira genial. Passear de cadeira pelo salão do hotel!
 E foi assim que me distanciei um pouco da mãe e do pai que olhavam algumas revistas espalhadas por ali. Aquilo sim era um “trem”  de cadeira legal.Tinha os pés em arco o que a fazia deslizar pela sala .
Foi então que, de repente a luz apagou. Na escuridão total um grito vindo do andar de cima me fez  ficar arrepiada..
 As sombras desenhadas nas paredes tornaram tudo muito mais assustador.  Abandonei a brincadeira e a coragem. Tateando, buscava mãe e pai. Distraira-me passeando de cadeira. E agora, onde estariam?
Imaginação turbinada pelo medo me via perdida e sozinha num abismo sem fim.
Afinal, encontrei a mão cuidadosa da mãe e agarrei-me nela como um náufrago na tábua de salvação! A coragem confundiu-se com a escuridão.
Logo apareceram os donos do hotel com velas acesas e distribuíram algumas entre os hóspedes. Naquela época não havia lâmpadas de emergência numa cidadezinha feito aquela.
Do andar de cima novamente o grito congelou os movimentos de todos. Estariam matando alguém? Um fantasma teria aparecido?
Estórias escabrosas contadas ao pé do fogo arderam na minha memória acelerando-me o coração. O que estaria acontecendo?
Logo passos despencaram dos degraus e gritos de pega ladrão atingiram ouvidos mais alertas que o normal.
 Agarrada às saias da minha mãe senti as orelhas crescerem como as dos elefantes do livro que a professora mandara ler naquela semana. Que vontade de estar em casa, debaixo dos cobertores onde ninguém conseguiria me encontrar.
 Viajar não era tão fácil como pensara.
 Então da mesma forma como fugira, a luz voltou! Danada de luz travessa. Garanto que sabia o que ia acontecer, pensei!
Agora, passado o susto ela voltava toda amarela. Podia ficar lá na rua, agora a gente já vai dormir mesmo!
Fui acordada por um apito longo e muito alto que me deixou meio atordoada E a mãe sacudindo meu braço parecia muito excitada com a grande aventura que estava prestes a se iniciar.
Havia uma neblina úmida e muito fria na estação. Meus olhos cresceram de curiosidade. Afinal, a visão do trem. Lá estava ele.
 O trem de verdade! Era imenso e vermelho. Puxado por uma locomotiva a carvão. Respirava tenso soltando fumaça como a Lalinha quando saía de manhã pra comprar o pão nas manhãs geladas da serra...
Esfregando os olhos o espanto escapuliu e foi parar naquela coisa tão esperada. Então aquilo é que era o trem!
Entendi porque a mãe chamava a tudo de “trem” principalmente quando eu deixava brinquedos espalhados pela casa.
- “Delia! Vai guardar estes teus “trem” antes que derrubem a gente!
Era lindo! Igual ao desenho do livro que ganhara da tia Carola no aniversário. Até a fumaça que saía lá da frente, como se alguém estivesse fazendo o fogo pela manhã.
Aquilo devia estar sempre no caminho de alguém. Grande daquele jeito! Uma coisa sem fim!
Agarrada à mão do pai subi o primeiro degrau daquela coisa que respirava impaciente para sair.. Parecia um cavalo bufando de pressa.
Eu me sentia como se estivesse embarcando para a lua, como os personagens de Monteiro Lobato na “Viagem ao Céu”!
Um novo e excitante apito !Muita gente se abraçando e correndo para a viagem!
Dentro do trem, estudando o ambiente meus olhos corriam numa observação acelerada. É preciso estar atento pra ver como as coisas vão acontecer. Olhava tudo e todos com uma concentração total, para crer que não estava sonhando novamente.
 Na verdade, fazendo planos pra depois do susto de estar, afinal, dentro de um trem!

De repente, um apito mais longo e como que gemendo, aquela coisa vermelha foi saindo do lugar com muita má vontade até que conformada iniciou uma marcha ritmada.

Acertadas as coisas, todos em seus lugares, inclusive o trem que ia sempre em frente cantando. Já era possível arriscar um passo fora do banco em direção ao corredor.

Agora sim, que fantástica viagem se poderia fazer!Ali se podia viajar caminhando e até correndo se quisesse.

Lá fora, a paisagem disputava corrida com a gente Mas, não tinha jeito. Ia ficando pra trás com tudo que estava dentro dela – casas, cachorros, árvores, pessoas, animais. Tudo passava, ia ficando longe. E eu dentro do trem, corria pra lá e pra cá porque não queria perder nada daquela fantástica viagem.

Minha primeira viagem! Minha primeira noite num hotel. E o trem, aquela coisa que corria sempre em frente, respirando cansado, bufando como o cavalo do tio Zé, deixando tudo pra trás.

 Comecei a aprender que viver e viajar era muito parecido. Ir sempre em frente e ver as coisas ficando pra trás!Até o espanto das coisas inesperadas.

Jamais esqueci minha primeira viagem de trem!     


Yedda Goulart